segunda-feira, dezembro 21, 2009

Um Feliz Ano Novo!

Por que os salmos são os livros mais lidos da Bíblia? Creio que uma das pistas é que eles contêm toda a experiência humana, do desespero à alegria, da gratidão à raiva, da celebração a beleza da natureza a perguntas sem respostas sobre a violência. As pessoas gostam de saber que há três mil anos alguém estava sentindo a mesma coisa e orando. A vulnerabilidade é exposta e permite afastar a cortina e vislumbrar que Deus está ali.
Curiosamente, os salmos me levam a aturar a igreja, esse amontoado de cantores ruins que fazem um ruído maior do que a soma de suas vozes débeis.
Para cada alma que exclama: “Fala Senhor, porque o teu servo ouve”, há dez que dizem: “Ouvi, Senhor, pois fala o teu servo”.
Somos levados, passo a passo, e diariamente, a técnicas de sucesso, e assim esperamos que se pudermos ligar os fios certos, os nossos desejos serão atendidos. A igreja absorveu o barulho consumista e materialista do século XXI.
Orar é deixar Jesus entrar em nosso coração. Jesus vem até nós, Ele bate, e nós devemos abrir a porta dos nossos corações (Ap. 3:20). Não é a nossa oração que move o Senhor. É Jesus que nos move a orar.
E mesmo quando perguntamos, “Será que Deus vai me ouvir? A minha fé é tão pequena”, podemos repousar no fato de que Ele ouve. Se temos fé suficiente para orar, temos fé suficiente para sermos ouvidos. A essência da fé é abrir a porta. Esta é a prova de que a fé ainda está viva.
O problema não é se Deus me ouve. Será que eu ouço Deus? Quando eu oro, exponho a minha nudez? Costumo revelar os segredos que tento esconder de mim mesmo ou temo desagradar-lhe expondo a lama na qual vivo me espojando?
A oração é uma ferramenta para chamar a atenção de Deus ou uma reação à sua presença?
Se a oração envolve a presença de Deus, ela implica em que algo inesperado e não planejado pode acontecer. A presença de Deus pode me surpreender em qualquer esquina, e eu só posso esperar, mantendo a minha atenção focada. Eu não o posso controlar, Deus se aproxima como a luz do sol que vem beijar a terra, e eu não posso continuar crendo que a luz da minha frágil lanterna possa revelá-lo.
Confesso que raramente sinto a presença de Deus nos santuários ou em ambientes cuidadosamente planejados. A maior parte do tempo ele me pega desprevenido, no meio dos meus dias comuns. “Tu me farás ver os caminhos da vida; na tua presença há plenitude de alegria; na tua destra, delícias perpetuamente” (Sl. 16:11). Mesmo quando mancho o silêncio com o barulho do mundo.
Malcolm Muggeridge disse que: “Um dos sistemas mais eficazes de defesa contra as incursões de Deus tem sido a religião organizada. As várias igrejas têm fornecido um refúgio para os fugitivos de Deus, a Sua voz se afoga no canto, o Seu cheiro se perde no incenso, o Seu propósito é obscurecido e confundido nos credos, dogmas, dissertações e outros pronunciamentos sacerdotais”.
Escrevo estas linhas após visitar uma igreja evangélica. O grupo de louvor abriu caminho através da primeira canção. As pessoas, bem vestidas, exalavam o odor da limpeza, as vibrantes aleluias pareciam espirituais. Deixei os meus olhos passearem pelo templo, e desviei os meus ouvidos do cântico para os sussurros. A mulher ao meu lado mostrava um papel para o marido. Um casal atrás de mim recriminava a atitude do filho. Poucos pareciam dispostos a focalizar o motivo do louvor. As aleluias soavam como um velho disco de vinil furado, repetindo mecanicamente a mesma frase.
Muggeridge parece ter razão. O melhor lugar para se esconder de Deus pode ser uma igreja. “Vocês fizeram da casa de meu Pai um lugar de comércio e reunião social. As suas roupas estão limpas, mas o coração também está? Você presta atenção em coisas sem importância e se esquece das coisas duradouras. Vocês falam as palavras certas, mas os seus corações estão longe de mim”.
Tenho enorme dificuldade com igrejas grandes. Sinto-me atraído para as pequenas igrejas. Entre poucas pessoas é difícil se esconder.
Mesmo assim, já vivi momentos inesquecíveis dentro de igrejas grandes e médias. Certa vez, de repente, eu fiquei fascinado pela palavra “Jesus” que estava na tela do retroprojetor. Jesus. Como é estranho ver esta enorme coleção de pessoas, de raças e classes sociais diferentes, apaixonadamente cantando sobre um rapaz judeu chamado “Jesus”.
O caos do meu cérebro deu lugar a uma espécie estranha de epifania. Por um breve momento eu vislumbrei os fios que conectam a minha vida, o mundo, o tempo e a cruz. Fragmentos de imagens ricochetearam pelo meu cérebro. Como uma pintura de Kandinsky, uma tapeçaria desarrumada, com linhas e cores que, inexplicavelmente, faz sentido. Uma comunhão misteriosa que transcende rótulos, categorias e racionalidade.
Apesar do abismo, como diria Emily Dickinson, da solidão, dos momentos de isolamento e desespero, e da desafinação vocal, há o sentimento comum e a memória universal. Então acrescento a lista inicial, o calafrio a percorrer meu corpo, as lágrimas a brotar nos olhos e a estranha sensação de invadir um lugar sagrado. Deus redime a minha insignificância.

(Trecho do livro "Relíquias de uma terra estranha" de Samuel Rezende)