sábado, março 03, 2007

Seguindo as pegadas

G. M. Hopkins viveu a tediosa vida de jesuíta envolto em dúvidas e atormentado por uma doença crônica. Beethoven compôs uma de suas maiores obras após sua surdez. Walter Scott escreveu suas famosas obras após haver sido chutado por um cavalo e estar confinado em sua casa durante vários meses. Mark Twain foi companheiro da morte. Amigos de infância, a irmã, dois irmãos, um filho e duas filhas morreram. Chesterton caminhou à beira do abismo, quando tinha 18 anos, experimentando trauma psicológico e espiritual, vítima da insanidade e pessimismo de sua época. Shakespeare presenciou a morte de sua filha. Victor Hugo presenciou a morte de duas filhas e a loucura de uma outra. Gauguin pintou grandes obras convivendo com a sífilis. Dostoiévski viveu à beira do desespero por causa de dívidas e da epilepsia. Isak Dinesen escreveu belos contos enquanto sofria com as dores de estômago e a fraqueza das pernas, conseqüência da sífilis contraída do seu marido, Barão Blixen. Eles caminharam na estrada do sofrimento.
Não devemos nos curvar ao sofrimento, mas resistir para contar sobre ele. Estas pessoas o experimentaram, e redescobriram entre as ruínas da dor, a esperança. Eles, como eu, defrontaram-se com a compaixão de Cristo – Aquele que sofre conosco. Apenas Mark Twain sucumbiu. A morte da terceira criança foi mais que a sua fé poderia agüentar.
A minha vida é pacata, despida de aventuras. Muitas pessoas viajam e voltam contando as histórias dos lugares que viram e das pessoas que conheceram. As minhas aventuras resumem-se as poucas viagens que fiz, a leitura de biografias e livros e a paixão por filmes.
Caminhando nestas estradas, cheguei a conclusão que há duas formas de relacionamento com a dor. Há pessoas que enterram as suas dores. O efeito é destrutivo. As pessoas que conheço e que se portam dessa forma costumam perder a compaixão. Um exemplo é o caráter trágico da Senhorita Havisham, personagem de Charles Dickens em “Grandes Esperanças”. Abandonada no dia do seu casamento, gasta os seus dias vagando entre as lembranças: a casa, o bolo, o vestido de casamento, as flores murchas, o relógio parado; prisioneira do passado. Dickens conclui: “Também sabia perfeitamente que ao rejeitar a luz do sol tinha rejeitado muito mais do que a luz; que no refúgio em que se havia enclausurado, se havia privado de mil influências naturais e salutares; que seu espírito sempre mantido na solidão veio a sofrer com isso, como sempre acontece aos espíritos que alteram a ordem estabelecida pelo Criador. No entanto, vendo como estava sendo castigada, vendo a sua infelicidade, a sua incapacidade profunda de viver no mundo em que se achava, vendo-a presa da vaidade do sofrimento, vaidade que se tornara nela uma monomania... e outras tantas vaidades monstruosas que foram a maldição de muitos neste mundo, vendo-a tão desgraçada, poderia eu olhá-la sem comiseração?”. A segunda forma é a que procuro vivenciar. Conheço a espada da dor, e como sobrevivente, não procuro esquecê-la, escondê-la ou fingir que nada aconteceu.
Jamais procurei romper os vínculos com o sofrimento. Talvez seja o Samuel daqueles tempos o que mais esteve vivo. É no sofrimento que nos aproximamos da essência que nos une a outros seres humanos. É no momento da dor que a porta abre-se e compreendemos a dor das outras pessoas. O sofrimento nos torna cientes de nossa pequenez, esmaga a auto suficiência, e nos torna mais sensível ao poder de Deus.
A dor pode transformar-se em tesouro quando nós a utilizamos como uma estrada de compaixão, que permite levar ânimo e auxílio a outras pessoas. Compartilhando as experiências, alegrias e tristezas, carregando a cruz um do outro. Assim estaremos imitando Jesus, pois da dor inescrutável da cruz surgiu a esperança da humanidade.
Escrevendo sobre a dor, eu penso na áspera parábola dos talentos. Jesus contou a estória do homem que antes de viajar, deu a três empregados, uma certa quantia: a um deu cinco, a outro dois e a outro um. Quando retornou, “aproximando-se o que recebera cinco talentos, entregou outros cinco, dizendo: Senhor, confiaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco talentos que ganhei”. O senhor o elogia, chamando-o de “bom e fiel” e convida-o a participar da sua alegria. O homem que recebera dois talentos fez outros dois e recebe o mesmo elogio. Mas, o homem que recebeu um talento desculpa-se dizendo: “eu estava receoso e escondi na terra teu talento; aqui tens o que é teu”. O senhor o repreende: “Servo mau e negligente... tirai-lhe, pois, o talento e dai-o ao que tem dez... E o servo inútil, lançai-o para fora, nas trevas” (Mt. 25:14-30).
O homem de um talento representa alguém que enterrou a dor, ocultando-a de tal forma que ela não produziu frutos para a vida. As trevas para as quais foi arremessado não significam, para mim, uma punição, mas uma conseqüência inevitável da decisão de enterrar a sua vida. Se você enterrar a sua vida, você não a abandona. Você está sozinho, na obscuridade.
Quando tentamos ocultar a dor, impedimos o crescimento. Diminuímos. Tornamo-nos pigmeus da fé.
Há os que negociaram com seus talentos. Negociaram com suas vidas. Somos comerciantes da vida: eu necessito de você; você necessita de mim. Essa é o convite do senhor, a participação na alegria de mais relacionamentos.
A ausência de Deus é a demonstração deste amor, esta devoção ao que os olhos não podem ver. Conseguir oferecer este amor, focalizando toda a sua atenção e superar a distância, deve ser o nosso maior desejo.

(Trecho do livro "Náufragos da fé" de Samuel Rezende)